Flamengo

Bandeira de Mello analisa finanças do Flamengo e volta do público aos estádios: ‘Não adianta queimar etapas’

Entrevista Bandeira de Mello
Foto: Reprodução/Internet

Entre 2013 e 2018, o Flamengo foi presidido por Eduardo Bandeira de Mello. Apesar de controversa, a gestão do ex-executivo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) eliminou dívidas e se tornou referência em gestão financeira no futebol sul-americano.

Em entrevista exclusiva ao Esporte News Mundo, o dirigente relembrou os trabalhos realizados durante o período e opinou sobre a atual realidade rubro-negra, o poderio econômico de Palmeiras e Atlético-MG, e o futuro dos grandes times cariocas.

– Outro dia alguém me perguntou: ‘Qual time é melhor: Flamengo campeão do mundo, lá do início dos anos 80, ou o Flamengo de agora, campeão da Libertadores e que está fazendo sucesso aí em todas as competições?’. Claro que, como torcedor, fico satisfeito com os dois, mas sabe porquê eu acho que o time de 1981 ainda é melhor? Porque na época os nossos adversários eram muito bons também. Os principais adversários faziam jogo duro com o Flamengo em todos os jogos. Naquele final dos anos 70, anos 80, o Atlético Mineiro tinha um time fantástico. Botafogo, Vasco e Fluminense eram clubes que tinham um poderio que, se não era igual ao do Flamengo, chegava perto; e hoje em todos eles estão passando por uma situação muito difícil. Esse desnível é o que torna as coisas mais fáceis para o Flamengo (atualmente). Mas é claro que o trabalho feito pelo Jorge Jesus foi uma coisa realmente fantástica e que todo mundo está tentando imitar. -, conta Bandeira.

A gestão de Bandeira no Flamengo

Esporte News Mundo: Uma questão muito forte de seu mandato foi o trabalho de reestruturação nas finanças do Flamengo. Hoje, como você enxerga o legado que deixou dentro do clube?

Bandeira: Eu nunca tinha sido dirigente esportivo antes. Nunca fui cartola. Minha experiência é toda do BNDES, onde você conhece a administração de praticamente todas as empresas do Brasil. Então, para mim, não existe nenhuma outra maneira de administrar que não seja com responsabilidade, com projeções financeiras visando o futuro e não assumindo nenhum compromisso que você não possa cumprir depois. Isso é uma coisa muito presente em pessoas que tem uma formação parecida com a minha, e eu não fiz nada sozinho no Flamengo. Tinha uma equipe muito grande lá comigo, e todos seguiam essa diretriz. Então, pode ter sido uma coisa diferente em relação à administração dos clubes brasileiros, mas em relação ao que você deve fazer na sua empresa, na tua família, nas suas finanças pessoais, não foi nenhuma novidade.

ENM: Você acredita que ainda falta às pessoas entenderem esses sacrifícios financeiros que muitas vezes as diretorias tem de fazer para que os clubes tenham um futuro melhor? 

B: Acho que o sucesso do Flamengo está fazendo com que os dirigentes esportivos (de outros times) abram os olhos para a necessidade de você ter uma administração responsável. Não só porque esse sacrifício todo que nós fizemos no Flamengo foi, vamos dizer, recompensado depois com a fase de prosperidade do clube, mas, se você fizer a comparação, todos os outros clubes que agiram de maneira irresponsável hoje estão pagando. Talvez a grande vantagem que o Flamengo tem hoje é que ele melhorou e os adversários pioraram. A diferença entre ele e os seus principais adversários – com raríssimas exceções – aumentou muito.

ENM: Falando desse período de sacrifício, qual você acredita que foi o ponto mais difícil de sua jornada no Flamengo?

B: Eu entrei em 2013 quando nossa situação era catastrófica. Aí, 2014 foi um pouco melhor do que 2013; 2015 foi melhor do que 2014 e as coisas foram melhorando aos pouquinhos. Depois que conseguimos a aprovação do PROFUT, em 2015, a coisa começou a ficar um pouco mais folgada, mas nunca deixamos de ter a responsabilidade como um um princípio fundamental. Então a coisa foi melhorando progressivamente. Em 2016, todos os clubes do Brasil assinaram seus contratos de transmissão de direitos de transmissão. Eu acho que foi um um ano marcante, porque todos os grandes clubes assinaram contratos altamente vantajosos, mas o Flamengo foi o único deles que usou aqueles recursos de maneira responsável. Usou as luvas para quitar dívidas e foi a única equipe que deixou parte das luvas para serem sacadas pela administração seguinte – que a gente nem sabia qual seria. Não usamos as luvas pro custeio imediato daquele ano, ao contrário da maioria dos clubes, que pegaram as luvas e investiram no time de futebol naquele ano. Depois, o dinheiro acabou e muitos deles estão passando dificuldades até hoje.

ENM: Você acha que a atual diretoria do Flamengo tem dado uma boa continuidade ao trabalho financeiro desenvolvido na sua gestão?

B: Eu voltei a ser torcedor, então eu não estou acompanhando os detalhes, mas tenho amigos que frequentam as reuniões do conselho, tenho amigos no conselho fiscal e tudo. O endividamento do Flamengo subiu por conta da pandemia, mas isso não é necessariamente um problema. O que eu acho é que os conselheiros, sócios e torcedores do Flamengo tem que estar permanentemente atentos para questões de responsabilidade financeira. Se todos estiverem atentos, acredito que não teremos problemas. Eu não sei de nada que aponte para uma uma queda na saúde financeira do clube. Se tiver, acho que todo mundo tem que estar de olho, porque essa foi uma conquista que veio a custa de muito sacrifício e não pode ser jogada fora. Vamos trabalhar e continuar torcendo para que as coisas continuem nos trilhos.

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O poderio financeiro de Palmeiras e Atlético-MG

ENM: Hoje em dia vemos outros clubes trabalhando para se fortalecer financeiramente e também no futebol, assim como o Flamengo fez. Você acredita que equipes como Palmeiras e Atlético-MG são boas referências neste segmento? 

B: Sim, só que são situações diferentes. O Flamengo nunca teve um aporte, uma fonte de recursos como Palmeiras e Atlético tem. Ou seja, um patrocinador que praticamente coloca recursos ilimitados dentro do clube. Isso o Flamengo nunca teve, todo o seu recurso veio de geração própria. Existe essa diferença. Mas, se você tem um mecenas, ou uma fonte de recursos dessa natureza, o que é excepcional, eu acho que o clube tem que aproveitar – e agir responsavelmente também. Nesse sentido, Atlético e Palmeiras tem tudo para ter sucesso, se aproveitando desse poderio que o grupo MRV e a Crefisa dão. 

ENM: Quando você estava no Flamengo, houve propostas de empresários que queriam fazer esse papel de mecenas do clube?

B: Não, não teve. Isso é uma coisa muito difícil de acontecer. Essa questão do mecenas tem muito a ver com a paixão pelo clube. Aliás, que eu me lembre, nunca houve na história do Flamengo essa figura do mecenas. Tanto no caso da Crefisa, como no da MRV, os proprietários desses grupos empresariais são torcedores apaixonados de Palmeiras e Atlético Mineiro. O Atlético ainda teve antes o BMG. Isso daí é uma sorte. E, quando você tem uma situação dessas, inclusive como o Fluminense teve no passado com a Unimed e o próprio Palmeiras teve também com a Parmalat, o desafio é administrar o corpo de maneira que se acontecer uma interrupção desse fluxo de recursos você possa seguir sobrevivendo e tendo aproveitado as vantagens dos muitos anos de aporte de recursos quase ilimitado.

ENM: Hoje, você acha que os clubes já tem noção de que precisam fazer um trabalho saudável mesmo com a presença de um mecenas ou eles ainda estão meio deslumbrados com esse aporte, essa fonte financeira?

B: Olha, eu não conheço detalhes da administração de Atlético e Palmeiras, mas sei que nos dois casos você tem pessoas muito competentes trabalhando lá. O departamento de futebol do Atlético tem o Rodrigo Caetano, que eu considero um craque, uma pessoa altamente competente e responsável; e no Palmeiras você tem o Cristiano Koehler, que é uma pessoa de confiança também. Os dois trabalharam comigo no Flamengo, então os conheço bem. Mas essa decisão estratégica de você ter uma política que previna esse tipo de problema no futuro está acima deles. Isso é uma coisa que está colocada no nível estratégico, ao nível do presidente. Mas eu acho que tem tudo pra dar certo. Ter mecenas é uma coisa boa, não é algo ruim. Eu gostaria muito que o Flamengo tivesse tido. Nós saberíamos administrar bem e talvez não tivéssemos precisado passar por tantos anos de sacrifício para garantir essa geração própria que o Flamengo tem hoje.

Responsabilidade social no futebol

ENM: A política no futebol é cíclica. Assim como o período Bandeira acabou, o período do Landim em algum momento vai acabar e novas diretorias virão. Como é trabalhar sabendo que um projeto que está sendo feito por você pode ser desfeito assim que uma nova gestão assumir o clube?

B: Eu acho que nesse caso você tem que pensar em soluções que garantam a perpetuidade desse tipo de política. Então, durante a nossa gestão nós conseguimos aprovar no conselho deliberativo do Flamengo uma reforma estatutária em que a gente tipifica como como gestão temerária várias práticas que aconteciam no Flamengo e acontecem até hoje em outros clubes, como exemplo apropriação indébita de recursos de imposto de renda, previdenciários, déficit anual… Basicamente tudo aquilo que a lei do PROFUT considera como obrigação, o Flamengo já fazia voluntariamente porque a gente fez a essa adaptação do estatuto. Então é muito difícil que daqui pra frente um presidente do Flamengo resolva agir de maneira irresponsável e não seja punido. A menos que ele consiga adaptar o estatuto e aprove um um novo estatuto que deixe a coisa andar solta sem nenhum tipo de punição. Acredito que o caminho para todos os clubes, além de uma política responsável, é ter mecanismos que garantam que essa responsabilidade seja permanente. Sem contar outras questões que hoje em dia estão ficando cada vez mais importantes, que eu acho que são importantes até pro próprio Flamengo, acho que é uma coisa que nós temos que evoluir também, que é a coisa da responsabilidade social. O futebol é o principal ponto de referência para maior parte da população brasileira, então, tem uma série de questões que preocupam hoje a maioria das empresas brasileiras e que acho não devem ficar a parte no futebol. 

ENM: E quais seriam essas questões, mais especificamente?

B: Olha, a questão da responsabilidade social. Hoje em dia você tem o ESG, que é uma sigla que está aí em todos os jornais. O ‘E’ de environment, que é meio ambiente em inglês, o S de social e o G de governança; então, política de responsabilidade social. Mecanismos racionais de governança e responsabilidade ambiental também, que é a principal questão da humanidade hoje. Acho que os clubes tem que evoluir muito nessa trilha. Quando nós chegamos ao Flamengo, fizemos o básico, que hoje em dia eu diria até que é obrigação, que é ter a responsabilidade de pagar impostos e salários em dia, regularizar todas as pendências com fornecedores, treinadores, jogadores e empresários, zerar a dívida trabalhista, etc. Nós fizemos tudo isso, o que era uma coisa impensável na época em que chegamos. Mas, olhando para trás, isso é obrigação de toda empresa e indivíduo. Isso vale não só para o Flamengo, mas para qualquer clube, empresa ou organização. Você tem que estar preocupado com a questão da responsabilidade social cada vez mais.

Bandeira analisa a situação de Vasco, Fluminense e Botafogo

ENM: Você falou dos clubes terem piorado no momento em que o Flamengo melhorou. Dentro dessa questão, como você enxerga o impacto da pandemia no meio do futebol? E dentro da realidade financeira do Flamengo?

B:  A pandemia afetou todos os clubes do mundo. Dificilmente você vai pensar num clube de futebol no mundo inteiro que não tenha sofrido por conta dela. Agora, quando você está organizado, estruturado e capitalizado, você sofre menos. Foi o que aconteceu com o Flamengo. Se antes de começar a pandemia você já está desestruturado, já está numa situação em que não consegue equilibrar receitas e despesas, e vem uma pandemia, aí as coisas degringolam mesmo. É por isso que eu falei que, além do Flamengo melhorar, vários outros clubes pioraram.

ENM: Falando de Botafogo, Vasco e Fluminense, você enxerga um futuro próspero para esses clubes?

B: Existe uma saída para todos os três, mas não é uma saída fácil. Assim como a trajetória do Flamengo não foi fácil, teve muito sacrifício. Mas, uma característica dos clubes do Rio é que eles são times com uma torcida grande e que está espalhada pelo Brasil. Em Minas Gerais, na grande Belo Horizonte, a maioria das pessoas torce para Cruzeiro e Atlético. Mas, no interior de Minas todo mundo tem time do Rio. Então, a torcida do Flamengo em Minas Gerais é muito grande, principalmente no interior. Isso vale para Botafogo, Vasco e Fluminense também, e não é só em Minas, é no Brasil inteiro. Esse é um ativo que os clubes do Rio tem e que vem da época da Rádio Nacional e do início da TV Globo, na época em que o Rio de Janeiro era a capital (do país) e que todo mundo no no Brasil tinha um time do Rio de Janeiro, ainda que tivesse um outro do seu estado. Eu acho que Botafogo, Fluminense e Vasco tem esse ativo para explorar também, além de serem clubes tradicionais e de grande torcida. Agora, eles vão precisar fazer sacrifícios (para se recuperar financeiramente). Imagino até que já estejam fazendo.

Volta do público aos estádios e a marca Flamengo

ENM: E dentro da sua gestão, de que você maneira você acha que melhor trabalhou a marca Flamengo?

B: Olha, o programa de sócio-torcedor do Flamengo, que não existia quando a gente chegou, quando nós saímos já era a segunda maior fonte de receita do clube, perdendo só para o contrato de transmissão. Essa é uma maneira que você tem de tentar monetizar a paixão de mais de quarenta milhões de torcedores. Além dele, você tem a receita de bilheteria e o licenciamento de produtos, que é uma coisa super importante. Se você é apaixonado pelo Flamengo você quer comprar um produto que seja licenciado do clube. Seja o que for. Além do uniforme, você tem caneta do Flamengo, copo do Flamengo… Aqui em casa mesmo eu tenho praticamente tudo (do clube).

ENM: Hoje em dia é comum ver o Flamengo jogando em Brasília. Você acha que realizar jogos fora do Rio é importante para aproximar os torcedores do clube que estão em outros estados?

B: Eu acho importante sim. Brasília, por exemplo, é uma cidade em que, se eu não me engano, a torcida do Flamengo é maior do que a de todos os outros clubes juntos. Brasília, Manaus e João Pessoa, se não me falha a memória, são cidades em que a torcida do Flamengo proporcionalmente é até maior do que no Rio. Acho que de vez em quando o Flamengo tem sim que fazer um carinho em seu torcedor que está longe do Rio. E quando o Flamengo joga em Brasília é até emocionante. 

ENM: E sobre a polêmica da liberação de público nos estádios, sua opinião a respeito? 

B: A pandemia é uma tragédia que se abateu sobre o mundo e que afeta o futebol também. Mas acho que a gente só vai conseguir melhorar essa situação se seguirmos rigorosamente o que for determinado pelas autoridades sanitárias e a ciência. Não adianta tentar queimar etapas. Eu acabei virando presidente por uma circunstância, mas sempre fui torcedor de arquibancada e hoje voltei a se, então, eu sinto muita falta de ver os jogos do Flamengo na arquibancada, mas acho que isso só vai poder acontecer quando tivermos o pleno aval das autoridades sanitárias.

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