Olimpíadas
Simone Biles e saúde mental: especialista fala sobre importância do trabalho psicológico com atletas de alto rendimento
— Continua depois da publicidade —
Simone Biles, ginasta dos Estados Unidos intitulada como estrela das Olimpíadas de Tóquio, desistiu, nesta quarta-feira (28), de competir as finais da ginástica artística feminina por equipes e tomou a decisão de não competir o individual geral por falta de saúde mental e pressão psicológica.
A decisão de Simone Biles pegou a todos de surpresa e reacendeu o alerta em relação à necessidade de acompanhamento psicológico dentro do esporte.
O psicólogo do esporte e pós-doutor em ciências do esporte, Dr. João Ricardo Cozac explicou o que se passa por trás da decisão de Biles e como funciona o psicológico de um atleta de alto rendimento. Ainda enfatizou a importância do treinamento psicológico, além do técnico e tático de um atleta.
– O treinamento psicológico é a base da pirâmide do treinamento esportivo. Um lado desse triângulo é a preparação física, o outro é a preparação tática e técnica e a base é a preparação psicológica. Não se pode criar atletas com corpos de aço, técnicas de aço e a base de barro. A estruturação de um atleta que estará capacitado para os grandes desafios que alto rendimento impõe, necessita de um trabalho, de preferência desde o início da sua carreira e da sua vida, para que ele possa ter uma estrutura, uma base mais sólida para encarar os desafios, as cobranças, as expectativas e as pressões que o alto rendimento costuma gerar – afirmou.
– O que ocorre é que boa parte dos atletas de diversas modalidades e com o foco na ginástica, principalmente, logo na primeira infância, já abandonam aspectos que são fundamentais para o crescimento, para a criação da autoimagem, do autoconceito, da identidade, e também da relação com o mundo, com as pessoas que estão a sua volta. Logo, de maneira muito precoce, o mundo dessas crianças se torna apenas o ginásio, apenas a professora, apenas a treinadora. E não se tem mais nenhum horizonte de expansão social, emocional e psicológica – continuou.
+Dias e horários dos jogos e competições das Olimpíadas de Tóquio
O especialista, autor de cinco livros sobre a Psicologia Esportiva, destrinchou a carga de Simone Biles e de tantos atletas que vivem sufocados com a pressão de alcançar o alto rendimento:
– O peso da fama, o peso das expectativas é quase insuportável para alguns atletas. Dependendo do perfil de personalidade e das vivências anteriores no período de desenvolvimento, na infância, pré-adolescência e adolescência. Dependendo de como tudo isso foi trabalhado ou não internamente, todas essas demandas atuais somadas também, no caso, da ginástica dos Estados Unidos, que teve recentemente o escândalo de assédio sexual dentro, que foi amplamente divulgado. Toda essa somatória com as expectativas do tamanho dos Jogos Olímpicos, com todos esperando com que Simone pudesse ser a grande atleta desses jogos, tudo isso acabou ficando muito pesado e quando ela diz que ‘há vida para além da ginástica’, o que ela quer dizer é o seguinte: há um ser humano que pratica, há um ser humano que abdica de uma infância, pré-adolescência, adolescência e início da fase adulta em nome do esporte. E, em alguns momentos, faz falta essas vivências não vividas para que o desenvolvimento emocional possa ocorrer de uma forma natural e saudável – afirmou João Cozac.
– Portanto, o caso da Simone é um grande sinal de alerta para as comunidades esportivas, em que se revela um caráter pouco saudável na prática do alto rendimento esportivo. No caso da ginástica, mais especificamente, por conta de um início extremamente jovem, são crianças que deixam de brincar, muitas vezes deixam de ir para a escola, para poder ir a ginásios treinarem com o sonho de virarem ginastas olímpicos. – explicou o especialista.
Siga o perfil do Esporte News Mundo no Twitter, Instagram e Facebook
Dr João Ricardo Cozac refletiu o retrato de desiquilíbrio das emoções e citou frase de Nelson Rodrigues, da década de 50, atribuindo uma alma ao atleta:
– O ato da Simone, certamente, é um marco para o esporte mundial. Ela traz, através de uma experiência própria, muito dura, muito angustiante e muito dolorida, o retrato que muitos atletas silenciosamente vivem. Um retrato de um desequilíbrio das emoções, de uma tentativa de uma adaptação às exigências de um esporte de alto rendimento. E não raro, o final dessa equação são síndromes de burnout, que é desistência precoce da prática esportiva, sendo ela temporária ou até definitiva. Quadros agudos de depressão, crises de ansiedade. Todas essas respostas emocionais podem estar associadas à dificuldade da adaptação de um novo status. Essa adaptação do novo status de campeã, de ícone mundial, já traz em si um aumento das expectativas externas seguramente e, muitas vezes, internas também.
– Então, o caso da Simone é um alerta mundial às exigências que o esporte de alto rendimento traz para que a gente possa olhar mais para o lado humano dos atletas. Antes de um atleta há o ser humano e o atleta que compete, treina e vive o esporte não se separa da sua esfera humana, da sua história, do seu desenvolvimento emocional. Tudo isso entra nas quadras, no ginásio, nas piscinas, nos estádios. É preciso, como já dizia Nelson Rodrigues, na década de 50, atribuir ao atleta uma alma. E é justamente, por conta dessa alma, como dizia Nelson, que as grandes catástrofes acontecem no mundo do esporte e no mundo da vida – concluiu Dr. João Ricardo Cozac.
O especialista, que relatou os conflitos internos e externos de Simone Biles e de diversos atletas no mundo, atua há 30 anos como psicólogo do esporte de atletas e equipes de várias modalidades e categorias esportivas.