Futebol Internacional
Sonho? Obsessão? A taça mais desejada da América do Sul nem sempre foi assim
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Nesse dia histórico em que os confrontos entre equipes brasileiras alcançam a marca de 100 jogos, olhar para a Taça Libertadores e sonhar com sua conquista é algo que passa na cabeça de todos os torcedores do continente. Um troféu que representa a liberdade dos povos sul-americanos e também o nascimento da chamada ‘Glória eterna’.
Mas nem sempre foi assim, para os brasileiros, a Copa Libertadores era apenas mais um torneio a ser disputado, em uma época de profusão de torneios interestaduais, nacionais e até continentais. Até meados dos anos 1990, a competição era a menos importante para muitos clubes do país.
“Chega a soar arrogância dizer que a Libertadores valia menos que um carioca, mas era a verdade, meu pai nunca quis me levar pra ver um jogo de Libertadores, ele ficava animado de ir ver o Flamengo jogar contra o Bangu ou o Vasco”, disse Amâncio da Silva, 46, vendedor e fanático torcedor do rubro-negro.
Na percepção de torcedores como o pai de Amâncio, o estadual era o momento de aproximação de pais e filhos, assim como ainda é nos dias de hoje. A distância que provocava um torneio continental com equipes estrangeiras causava estranheza entre os torcedores mais simples.
“Ir ao Maracanã era algo comum pra gente que era pobre, era oportunidade de ver jogadores, craques brasileiros como o Dinamite, o Zico, o Assis e nesses jogos (Libertadores), não sabíamos o nome de nenhum jogador“, afirmou Amâncio.
“Diferente do meu pai, que eu entendo os motivos dele, quero levar minha filha aos jogos da Libertadores. Acho mais emocionante ganhar do Tolima do que do América“, completou Amâncio.
Era dependendo dos estaduais, na época ainda disputados nos meses finais dos anos, que o orçamento do ano seguinte era desenhado. A importância dos campeonatos locais era tamanha, que por algumas vezes, clubes brasileiros desistiram de disputar a competição da CONMEBOL.
Logo no início em 1966, houve a discordância dos dirigentes brasileiros com o regulamento da competição, anos depois o mesmo episódio se repetiria em 1969, quando o torneio da Taça Brasil do ano anterior teve duração de 14 meses. A solução foi convidar Santos e Internacional, campeão e vice da Taça Roberto Gomes Pedrosa de 1968.
As equipes aceitaram o convite, mas vendo que atrapalhariam o desempenho nos estaduais, acabaram desistindo.
Até mesmo em 1970, os brasileiros ficaram de fora da Libertadores, mas dessa vez por decisão da própria CBD, Confederação Brasileira de Desportos, que discordou do calendário proposto pela competição e priorizou a preparação para a Copa do Mundo de 1970.
Naquela época, os clubes brasileiros tinham por costumes fazer excursões pela europa realizando partidas amistosas e torneios de verão do qual conseguiam receber em dólar, e por serem eventos curtos, não prejudicavam o calendário.
Moacyr Siqueira, 79, torcedor do Botafogo e apaixonado por futebol não via futuro na Libertadores na época de Pelé, “Era um torneio confuso e ruim, os jogadores apanhavam muito e nunca conseguiam jogar bem”.
O porteiro aposentado, que hoje acompanha as partidas do time pela televisão em seu apartamento no bairro de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, afirmava que das poucas recordações do Santos de Pelé, lembrou que partidas contra equipes estrangeiras eram sempre um ‘terror’.
“Ele jogava mais focado contra o Botafogo, contra o Vasco, contra o Corinthians, quando passava na TV. Agora teve uma vez que ele enfrentou um time uruguaio, acho que era o Peñarol ou o outro, ele nem chutou pro gol. Ele nem estava com vontade jogar”.
A truculência dos adversários, os gramados ruins e a hostilidade dos torcedores rivais, que abusavam do racismo, na época cuja a punição não existia, motivava os clubes brasileiros por vezes a não levarem a sério a competição continental.
“Naquela época, muitos jogadores do nosso time serviam também a seleção brasileira e as viagens eram um grande desgaste. Fazíamos excursões pela América e pela Europa. Era importante ganhar a Libertadores, porque ela te levava ao Mundial e isso rendia ao Santos muito mais prestígio e retorno financeiro. Mas sempre houve essa preocupação dos dirigentes, eles não queriam que corrêssemos riscos”, disse o ídolo santista Pepe, aos 86 anos, em uma entrevista a Placar.
São Paulo mudou a percepção dos brasileiros
Ao vasculhar os arquivos da revista Placar e de outros jornais na época, era possível ver a importância sendo dada as conquistas continentais dos clubes brasileiros. Mas essa relação não era tão apaixonante.
Em 1979, o Palmeiras após ver as conquistas do Santos e do Cruzeiro na competição contratou o uruguaio Pedro Rocha para liderar a equipe na conquista do troféu sul-americano. Mas com o desenrolar do ano, o próprio clube alterou seu plano inicial e priorizou a conquista do Campeonato Paulista.
“Todas forças do Palmeiras estão centralizadas no Campeonato Paulista. Para a Libertadores, o que sobrar”, estampava a capa da Placar.
Até o inicio da década de 1990, a transmssão da Libertadores era amadora, cabia a algumas emissoras que deslocavam com uma equipe reduzida afim de cobrir jogos fora do Brasil. Era comum a queda ou a falha do sinal durante as transmissões, a televisão no Brasil não tinha capacidade de realizar cobertura em alto nível.
Em 1992, o título do São Paulo foi visto na CNT e não na TV Globo, na voz de Galvão Bueno. Vendo a explosão de números de audiência, a emissora carioca comprou o torneio continental e o passe do narrador.
E foi com esse esquadrão liderado por Telê Santana que a Libertadores ganhou um novo contexto para os brasileiros, os estádios lotados para os jogos com equipes estrangeiras, incentivou outros clubes a priorizar o torneio que já existia há 30 anos mas só conquistou o maior país da América do Sul com um certo atraso.
César Sampaio, hoje braço direito de Tite, revelou que a entrada da Parmalat na administração do Palmeiras tinha esse objetivo, “A Parmalat chegou no Palmeiras e a ordem para os jogadores era sair da fila do Paulista e ganhar a Libertadores, que estava com o São Paulo. Passou a ser o nosso objeto de desejo e lutamos muito para tirar o título deles. Ganhamos o Brasileiro, mas perdemos na Libertadores de 94″.
Mas mesmo com o fracasso tricolor em 1994 para o Vélez Sarsfield que tirou do futebol brasileiro o título da Libertadores, a missão do São Paulo não era ganhar apenas a América e depois o Mundo, mas sim mudar a visão que os times brasileiros tinham do torneio continental.
“Meu pai teve sempre os pôsters do São Paulo na parede lá de casa”, disse Camila Borges, 26, atendente de telemarketing que vive no Rio de Janeiro apesar de nascida em São Paulo. “Meu pai amava o Rai, tanto é que meu irmão tem esse apelido até hoje, foi com a Libertadores que ele mostrou o amor que tinha pelo futebol”, completou.
Mesmo com a história provando que Telê era o grande herói dessa mudança para os brasileiros, o treinador era o mais resistente a ideia da Libertadores. Por diversas vezes, o comandante chegou a comparar a Copa com um mero torneio amistoso, “as partidas tem tanto interesse como os jogos amistosos”, afirmava.
“Tratar a Libertadores com a prioridade que ela merece”
A relação entre brasileiros e a Libertadores ganhou contornos mais românticos na última década, e se tornou um desejo mais vísceral. Mauro Cézar Pereira, jornalista da Jovem Pan, no programa Bate Pronto resumiu que a facilidade para se acompanhar um jogo de futebol foi determinante para se popularizar entre os brasileiros.
Com a retomada do crescimento financeiro das equipes brasileiras, o fortalecimento do futebol no país facilitou a busca por esse sonho. As últimas três finais da competição foram vencidas por clubes brasileiros, Flamengo em 2019 e Palmeiras em 2020 e 21.
Kevin Oliveira, 24, outro torcedor do Botafogo do Rio de Janeiro não desiste do sonho de que ainda verá o Fogão alcançar a ‘glória eterna’ continental, “Agora com o Textor ninguém vai segurar o Botafogo”, diz ele rindo.
Apesar da esperança depositada no magnata, o retrato da paixão dos torcedores brasileiros com a competição continental se tornou uma obsessão de praticamente todas as diretorias de futebol do Brasil. É comum ver que a estratégia dos clubes passam pelo desempenho em como chegar a Libertadores ou em permanecer nela.
“Os brasileiros foram muito felizes nesse ponto. Alguns priorizaram o poder econômico e outros o esportivo, mas em todos os casos, tratam a Libertadores com a prioridade que ela merece”, pontuou José Maria de La Riva, 31, jornalista peruano da Alivia Media.
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