Fortaleza

Na véspera do dia dos pais, relembre a carta escrita por Tinga para a sua filha contando sua trajetória e relação com o Fortaleza

Mateus Lotif/Fortaleza EC

Em carta escrita para sua filha, o Jogador do Fortaleza relembra luta de sua mãe, começo no futebol e história no Leão até principal disputa da história do clube (Libertadores). A matéria referenciada foi realizada pelo Globo Esporte, no mês de Abril, e teve produção da jornalista Beatriz Carvalho.

Tinga passou três meses fora por conta de uma lesão, mas deve voltar a ser relacionado justamente no Clássico-Rei deste domingo, 13, que também é a data em que se comemora o dia dos pais dia dos pais.

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A CARTA

Oi, minha filha Lívia.
Sei que, nessa fase, você sente muita saudade do papai quando ele precisa estar longe por conta do trabalho e não pode brincar com você e te deixar na escola todas as manhãs. Por muito tempo, fomos somente eu e a Luma, sua mãe, e você chegou para encher a nossa casa de vida e de ainda mais amor. Te amo todos os dias e quero que você tenha as melhores lembranças do pai calmo e brincalhão que sou.

Mas além do meu compromisso com você e com a nossa linda família, eu também tenho um elo muito forte com um monte de gente. Tanta gente que lota um estádio gigante, acredita? É esse o tamanho da minha missão. Um dia você vai assistir aos jogos e entender. É que, dentro de campo, eu sou o Tinga, do Fortaleza. Concentrado e focado. O cara que quer vencer. Também sofro pelos dias longe de você, mas caminhei tanto, fiz tantas mudanças pelo que estamos vivenciando agora, Lívia. É um dos maiores desafios da minha carreira. Vai ser um orgulho vestir a camisa do Fortaleza na Libertadores. E você vai sentir muito orgulho do papai.

Isso tudo é também pelo garoto de Porto Alegre que chutava pedra, panela e enlouquecia a Dona Gracilina, minha mamãe. Eu não dava sossego, é verdade. Depois de escutar os conselhos dos vizinhos e cansar da correria em casa, o jeito foi me levar para a escolinha do Grêmio. A partir daí passei a curtir o momento de jogar futebol, porque antes era só brincadeira de garoto. Eu ficava até tarde na rua e nem adiantava me chamar para casa, eu fugia para passar o dia todo jogando.

Eu não teria alcançado tanto no futebol se não fosse a sua vó. Ela é um exemplo. Ela foi nossa força, batalhou muito por isso e sonhou tudo comigo. Eu via o esforço dela e graças a ela, eu estou aqui nesse momento.

Lembro de como era ter que ir aos treinamentos. Às vezes eu tinha que contar com a sorte e a parceria do cobrador. Um dia, a gente não tinha como voltar, ele já me conhecia porque sempre estava ali para ir aos treinos e deixou a gente ficar sem precisar pagar a passagem. Sua vovó começou a fazer salgados para a gente ter as passagens para ir aos treinos. Eu dependia dela e ela encarava qualquer coisa.

Sua avó sempre esteve ao meu lado, literalmente. Em cada ida ao treino e até na adolescência, quando a gente não quer sair com a mãe como companhia (risos). Ela estava. Mesmo nos momentos que eu estava desesperado, ela segurava tudo para que eu chegasse tranquilo. Esse apoio foi a melhor coisa para me trazer até aqui e pode ter certeza que suporte é algo que também nunca vai te faltar. Ver que tudo é melhor para ela, para sua mãe e para você me faz acreditar que tudo valeu a pena.

Te contando em retrospectiva, posso te dizer que o que fez tudo dar certo foi a persistência. Ela e o trabalho duro me fizeram me destacar em mais de um lugar que passei. O garoto de Porto Alegre chegou a usar a camisa amarela da Seleção Brasileira de base, acredita? Eu lembro exatamente como foi. Em 2013, eu estava indo muito bem no Grêmio, jogando demais. O pessoal falava “Tu vai ser convocado” e eu não queria criar muitas expectativas e respondia: “vou esperar”. Na verdade eu tentava não me preocupar com isso, e quando chegou, foi exatamente como eu sonhava.

Fui passar 10 dias na Granja Comary… Meu Deus do céu… Cresci vendo alguns jogadores que jogavam comigo no Grêmio e iam para a Seleção. Na época eu ficava pensando “Nossa os caras só usam Nike, os caras são da Nike”. Quando foi minha vez fiquei bobo “ah, vou usar só Nike”. Para ter uma noção de como era para mim o que estava acontecendo no momento.

Quando cheguei na Granja Comary, a estrutura era impressionante. Eu ficava vendo os jogadores que já estavam praticamente no profissional e já se falava muito no nome deles… Eu só conseguia pensar que era uma chance gigante e queria aproveitar cada momento. Mas as passagens pela Seleção foram bem complicadas para mim.

A primeira convocação foi tranquila, mas, nas outras, eu infelizmente sempre me machucava. Em três, eu me machuquei e sempre me preocupava muito. Quando fui para o Torneio Internacional de Toulon fraturei meu pé, o quinto metatarso. Eu estava jogando bem e sabia que naquele ano eu iria subir para o profissional e ia jogar. Foi uma fase que me machuquei na Seleção e perdi meu espaço no Grêmio, depois tive que ser emprestado. Foi um momento que tive que superar e acreditar no meu futebol.

Depois das lesões e no meio das trocas de times, eu sabia que merecia voltar a ser convocado. E a oportunidade veio novamente em 2015, para o Pan-Americano. Fui o primeiro jogador do Fortaleza convocado para a Seleção. Estava orgulhoso, tinha 22 anos, não entendia bem o que estava fazendo pelo clube. Não dava para ter noção do tamanho disso. Agora vejo como representou tanto. Na Seleção me tornei mais maduro, preparado, passei poucas e boas na vida para chegar nesse momento no Fortaleza. Em 2015 ainda não era hora de permanecer nesta casa, mas eu sabia que estava deixando algo em aberto aqui.

Eu estou no futebol há muito tempo, filha. Comecei só um pouco mais velho que você agora, aos seis anos. Mas só 10 anos depois, aos 16, é que tive a confirmação de que seria jogador profissional. E foi em um momento que estava precisando muito.

Eu estava no juvenil do São José de Porto Alegre e naquele momento recebia uma ajuda de custo de R$ 200 reais. O São José queria fazer um contrato mais longo comigo, eu precisava muito. Era um contrato de três anos e ia receber um salário mínimo, algo como R$ 550 em três anos. Eu pensei: “vou encarar essa, eu vou”. Mas apareceu uma pessoa que me ajudou muito naquele momento e pediu para eu esperar.

Ele disse: “Espera, que vou conseguir um teste para você no Grêmio, você vai fazer um teste e ver se vai ficar”. Decidi que ia fazer isso e me preparei, passei mais de um mês treinando fora, sabia que seria a última oportunidade da minha vida. Um dia você vai estar em situações em que é necessário tomar uma decisão difícil. Não tem como te preparar para esses momentos, você só sente. E aquele era o momento certo.

Eu sou um pouco teimoso também. Queria provar que tinha condições de jogar no Grêmio, principalmente porque eu acreditava que tinha. Você sempre tem que confiar no que acredita. E sempre tem que acreditar em si. Comecei no Grêmio e queria voltar para lá. Eu me preparei muito para aquele momento. Na época eu jogava de volante, mas no Grêmio tinha muito volante, tinha volante da seleção de base, sabia que eu ia ser mais um. Estava faltando lateral-direito, então pensei, posso jogar lá. Encarei e acertei. Passei mais de um mês treinando até eles falarem que eu ia assinar um contrato e ficar lá e foi ali que eu vi que seria jogador. Que de um jeito ou de outro ia encarar e deu tudo certo.

Tenho muito orgulho do meu caminho até aqui, mas não tem como dizer que foi fácil. Passei por coisas que espero que você nunca passe. E algumas vezes vi meus planos e sonhos frustrados por coisas que não dependiam de mim. E como é difícil encarar. Mesmo assim aprendi a não desistir fácil das coisas, e é isso que quero te ensinar.

Me senti prejudicado em um período da minha carreira. Foi injusto o que fizeram comigo no Grêmio. Eu era um dos poucos jogadores da época que estavam na Seleção, o Felipão não me deu oportunidade. Todo mundo falava bem de mim no Grêmio e eu fazia por merecer. Ele não queria me utilizar, disse que eu era muito abaixo de todo mundo, dos jogadores que estavam subindo e não teria oportunidade. Tomei um baque ali porque eu vi que não ia jogar com ele e muito dificilmente ele ia sair naquele momento, porque era ídolo. Foi duro e pensei muito sobre permanecer. Como não ia ficar parado, tive que fazer alguma coisa.

Decidi encarar o Boa Esporte, não sabia o que ia vir para mim, ninguém falava do time lá no Sul, não sabia quais eram os jogadores, mas decidi ir para cima. Foi um período curto, só quatro meses. Consegui jogar, a experiência foi maravilhosa, mas bem solitária. Sua mãe não foi comigo. O trabalho valeu a pena, porque fizemos a melhor campanha do time, mas não subimos por conta do jogo contra o Icasa, em Juazeiro.

O time já estava rebaixado em 2015, a gente só precisava empatar o jogo, só dependia da gente, mas perdemos para eles e o Boa não subiu. Foi bem difícil. Depois daquele momento eu sabia que alguns times iam me procurar, sabia que não ia continuar no Grêmio. Esperei oportunidade e escolhi o Fortaleza.

Eu não conhecia nada do Fortaleza, todo mundo falava muito mal do Nordeste, falava que não pagava, que era terceira divisão e não tinha dinheiro para nada. “Onde eu tô me metendo? Vou me arriscar de novo?”.

Na decisão do Campeonato Cearense 2015, o clima era tenso, a gente só precisava do empate para levantar a taça. O Ceará marcou aos 45, mas não podia terminar assim. O grito da torcida de campeão estava entalado. Todo mundo ali merecia aquela conquista. A bola certa chegou em mim e mandei de cabeça para o Cassiano marcar. Torcida eufórica, estádio em festa, virou música e já era cena de filme. Com o tempo dá pra ter a real noção do que foi feito, o que ocorreu.

Foi uma das melhores coisas e deixei guardado, esperando o momento certo de voltar para cá, mas antes disso fui comprado pelo Bahia.

No Bahia, o ano de 2016 foi muito bom, consegui ajudar meus companheiros e conseguimos o acesso para Série A. Joguei até de lateral-esquerdo no final, com o Guto Ferreira. No ano de 2017 não sei o que aconteceu. Terminei bem o ano anterior, mas eles não queriam me utilizar. A diretoria empurrava para o treinador, o Guto Ferreira empurrava para a diretoria, e fiquei muito chateado. Não entendia as razões daquilo estar acontecendo, porque ninguém falava nada comigo. Mas senti mais esse baque.

Fiquei dois a três meses treinando junto com o grupo, mas eles falaram que eu não seria utilizado. Eu treinava com o time reserva, treinava muito e os jogadores não entendiam como eu não estava indo para o jogo: “o que estava acontecendo?”. Eu também não tinha ideia.

Ia sair dali. O Gilmar Dal Pozzo me ligou e queria que eu fosse para o Juventude e aceitei. Queria jogar perto de casa e a experiência foi boa para aquele momento. No começo fui muito bem, mas não rendi o esperado, não dei tantas assistências e nem fiz tantos gols. O Gilmar foi demitido e chegou o Zago, depois não fui mais utilizado.

Naquele momento eu estava perdido e sem planos para 2018. Não tinha nada em mente, sabia que não seria utilizado pelo Bahia. Teria que me reinventar novamente. Pensei, pensei e resolvi voltar para aquele lugar que tinha deixado guardado, onde saí só com boas lembranças. Restava saber se eles também queriam contar comigo. E o reinício dessa relação é bem engraçado, Lívia.

Começou com uma mensagem para o Marcelo Paz: “Como está? Não tem uma vaguinha para mim aí?”. Ele falou: “Vou ver o que o Rogério está querendo e coloco seu nome na lista“. Não sei bem o que o Ceni estava buscando, mas sei quem ele não queria: eu. Isso virou uma brincadeira depois. Ele até ficou bravo que falei isso, mas é verdade. Ele não queria, porque não me conhecia muito.

Ele achou que era muito caro na época para mim. Falei que abria mão de 20%, 30% do salário, mas ele seguiu “ah, não quero”. Marcelo Paz resolveu bancar e eu fiquei “como vou chegar lá, o cara não me quer, ainda mais o Rogério Ceni”. Então ia ter que fazer valer esse voto de confiança. Ia dar 200%. Desde o começo ele me tratou bem. Bastou dois jogos para ele mudar de ideia. Ele falou: “Agradece ao Marcelo Paz, que ele que te bancou”.

O Rogério ajudou muito, amadureci muito. Aprendi a jogar mais com a bola, ter paciência, caprichar no passe, ele era o chato do bem que sempre cobrava. Todo dia de manhã ele xingava todo mundo para estar ligado nos passes, caprichar e isso dava certo nos jogos. O que fazia diferença era essa cobrança. E isso eu levo para a minha vida, porque sempre tento me cobrar muito para treinar bem e cobrar meus companheiros também. O melhor momento de cobrar é nos treinamentos, porque no jogo, se errar, errou.

Deu muito certo. Em 2018 conseguimos ir muito bem, ninguém confiava que o Fortaleza ia subir direto, mas fizemos um ano espetacular e em 2019 também. Na Série A eu sentia que era mais um jogador para compor grupo, sabia que se chegasse mais um iam me empurrar para escanteio, me liberar. Então aí tive que trabalhar ainda mais. Sabia que era o momento mais importante do clube e queria estar junto. Sabia que podia ajudar dentro e fora de campo, e foi isso que aconteceu.

Em 2019 não jogava tanto, mas ajudava, depois entrava quando precisava e fazia gols, buscava ajudar. Em 2020, também não era titular absoluto, mas não reclamava.

Era hora de um novo momento no mesmo lugar. Na temporada de 2021 me senti mais estabilizado. Mas a gente tem que ter sempre a mente aberta para mudanças e estar pronto. O Vojvoda chegou e revirou tudo. Da água para o vinho. Mudei para uma posição que eu não conhecia. Mas não é que tinha que ser mesmo? Hoje é a posição que mais curto, porque consigo jogar, tenho a visão de todo campo e corro menos. Consigo render 100% o jogo todo e me recupero mais rápido para o jogo seguinte.

É muito orgulho estar no Fortaleza. O torcedor, a diretoria, os jogadores que estavam na época, ninguém sabia que ia chegar a uma Libertadores três anos depois. Ninguém acreditava, nem nos melhores sonhos. Ninguém ia apostar nisso.

Foi um longo caminho e saiba que estou bem feliz e realizado. Mas dá para ir além.

E eu sinto que não parei por aqui, filha. Seu pai ainda é novo e tem a mesma vontade de aprender que tinha aos seis anos, quando entrou em um campo pela primeira vez e se apaixonou pela bola. A mesma inquietação do menino que chutava as panelas de Dona Gracilina. A mesma garra que me fez trocar de cidade, estado e clube todas as vezes em que não estive satisfeito. E a vontade de vencer que sempre me acompanha quando estou em campo.

Na minha cabeça, tenho muito ainda o que mostrar. Não me preocupo, não fico pressionado em ser ídolo. Tenho em mente que eu sou mais um jogador do Fortaleza, que todos são essenciais, e vou defender essa camisa com unhas e dentes.

Por enquanto, ainda posso fazer muito mais pelo torcedor do Fortaleza e por você.”

Créditos da produção: Beatriz Carvalho

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