“A soberba precede a ruína”. O trecho está no Livro de Provérbios (16:18), mas resume o 2023 do Flamengo. O ano que começou com um otimismo exacerbado para um confronto futuro – e que jamais ocorreu – contra o Real Madrid, por uma eventual final do Mundial de Clubes, transformou-se num verdadeiro fracasso. A considerar o investimento financeiro, talvez só o “melhor ataque do mundo” de 95, com Romário, Sávio e Edmundo, tenha causado tanta decepção.
O planejamento já começou errado, com uma inexplicável – e conturbada – saída do técnico Dorival Júnior, então campeão da Libertadores e Copa do Brasil, ainda em 2022. Vítor Pereira, escolhido para assumir o cargo, acumulou eliminações na Supercopa do Brasil (contra o Palmeiras), na Recopa Sul-Americana (para o Independiente Del Valle-EQU) e no Estadual (para o Fluminense), e foi demitido em abril.
Depois veio Jorge Sampaoli, a fim de “estancar a sangria”, mas o argentino tampouco convenceu. À frente da comissão técnica, ele conduziu a equipe à queda precoce nas oitavas de final da Libertadores, diante do Olimpia (Paraguai), e ao vice-campeonato da Copa do Brasil. Pela primeira vez desde 2016, e com um investimento muito superior ao de sete anos atrás, o Flamengo encerrou uma temporada sem levar um troféu sequer.
Além das frustrações em campo, o clube desembolsou mais de R$ 20 milhões em multas rescisórias. Mas ninguém pode dizer que o elenco não “lutou”, não é mesmo? O desempenho ruim, somado às eliminações, afetou o psicológico dos jogadores, comissão e até diretoria. O resultado foi uma reincidência de brigas internas, com direito a agressões.
O fim do ano, porém, trouxe alguns alentos. A chegada de Tite devolveu esperança por dias melhores, e o Natal foi feliz com a contratação do uruguaio De La Cruz. E a expectativa é que cheguem mais reforços pela frente. Em ano de eleição presidencial, Rodolfo Landim tem tudo para abrir os cofres e pavimentar o caminho para eleger seu sucessor.
EM NOVEMBRO DE 2022…
O ano rubro-negro começou em novembro de 2022. Antes mesmo do fim do Campeonato Brasileiro, em 25 de novembro retrasado, a diretoria optou por não renovar o contrato de Dorival Júnior, que conduzira o desacreditado Flamengo ao tri da Libertadores e ao tetra da Copa do Brasil.
Vítor Pereira, que havia apresentado problemas de relacionamento no Corinthians e que fora derrotado por Dorival em mata-mata das duas competições citadas, foi o escolhido. O português, na época, alegou problemas familiares (uma suposta doença da sogra) para não renovar com o Timão. Por isso, foi chamado de mentiroso pelo então presidente Duílio Monteiro Alves quando foi anunciado o acerto com o clube carioca, em 13 de dezembro passado.
REAL MADRID, PODE ESPERAR…
Alçado à comissão sob descrédito do elenco e, sobretudo, dos torcedores, que nunca aceitaram a saída de Dorival, o português jamais convenceu a Nação. E não foi por menos. No Mundial de Clubes, em que o vice Marcos Braz e atletas já davam como certo a decisão contra o Real Madrid, o Flamengo de Vítor Pereira perdeu por 3 a 2 para o Al-Hilal de Ramón Díaz, hoje no Vasco, e caiu nas semifinais. Até hoje os Merengues “esperam a sua hora chegar”.
Antes de cair precocemente no Mundial, Pereira e Flamengo já haviam perdido a primeira final do ano. Em 28 de janeiro, foi derrotado por 4 a 3 pelo Palmeiras na decisão da Supercopa. Já em fevereiro, o Flamengo terminaria com vice-campeonato da Recopa diante do limitadíssimo Del Valle, em pleno Maracanã. Depois ainda foi vice da Taça Guanabara mesmo com a vantagem do empate diante do Fluminense.
Em abril, veio o golpe final. Após abrir 2 a 0 sobre o Flu no jogo de ida da finalíssima do Carioca, o Flamengo entrou em campo de forma apática e foi goleado de forma vexatória por 4 a 1. Detalhe: o gol de “honra” foi marcado já no fim. VP não resistiu.
VEXAME NA LIBERTADORES E QUEDA DE SAMPAOLI
Dias após a queda de Vítor Pereira, a diretoria rubro-negra encarou um dilema: apostar no desempregado Jorge Sampaoli, que passou por Santos e Atlético-MG sem conquistar títulos, ou aguardar Jorge Jesus encerrar a temporada europeia com o Fenerbahçe. VP caíra no dia 10 de abril, três dias antes da partida contra o Maringá-PR, pela terceira fase da Copa do Brasil. O revés por 2 a 0 no Paraná evidenciou a necessidade de um treinador, e Sampaoli foi anunciado no dia seguinte.
A passagem do argentino, respaldada por Rodolfo Landim, seria conturbada. De enorme dificuldade nas relações humanas, o treinador e a sua falta de diálogo transformaram o Ninho do Urubu para pior. Não bastasse isso, não conseguiu nunca imprimir um futebol dominador. Numa busca forçada de dar sua própria cara ao time, Sampaoli foi demitido no fim de setembro sem nunca ter repetido uma escalação em 39 jogos.
Pelo caminho, caiu de forma vergonhosa para o fraco Olímpia nas oitavas de final da Libertadores e acumulou mais um vice: da Copa do Brasil, contra o São Paulo de Dorival Júnior. Futebol e destino podem ser cruéis às vezes.
‘CLUBE DA LUTA’ FLAMENGO
Pablo Fernández x Pedro
Quando Sampaoli conseguiu sustentar uma larga invencibilidade (11 jogos), uma agressão destruiu de vez o vestiário rubro-negro. No décimo jogo da série invicta, que terminou em vitória por 2 a 1 sobre o Atlético-MG em Belo Horizonte, Pablo Fernández, amigo de longa data e responsável pela preparação física, deu um soco na cara do atacante Pedro, que desobedeceu uma ordem para aquecer enquanto o jogo ainda rolava.
Dias após a agressão de Pablo Fernández a Pedro, Jorge Sampaoli se pronunciou. Em vez de condenar o amigo, optou por colocar agressor e agredido no mesmo barco. Sem clima, Pablo pediu demissão no dia seguinte, mas a relação entre técnico e elenco nunca mais foi a mesma.
Gérson x Varela
Em mais uma demonstração de quanto o clima estava pesado, menos de três semanas após a agressão de Pablo, um novo episódio grave. Varela partiu para cima de Gerson em um treinamento, e o Coringa também respondeu com um soco no rosto do companheiro.
O clube contemporizou e não cortou os atletas do jogo seguinte ao episódio – duelo decisivo de semifinal com o Grêmio. Os dois fizeram as pazes, o Flamengo venceu por 1 a 0, e os jogadores tentaram uma aproximação de Sampaoli com um abraço coletivo e simbólico no gol de Arrascaeta.
Marcos Braz x torcedor
A crise que começou no campo e afetou comissão e elenco também atingiu a diretoria. Em 19 de setembro, cinco dias antes do jogo de volta da final da Copa do Brasil (o Fla perdeu na ida por 1 a 0, no Morumbi), Braz, acompanhado de sua filha, foi a um shopping na Zona Oeste do Rio para comprar o presente de aniversário de 15 anos dela.
Confrontado por um torcedor, identificado como Leandro Campos da Silveira Gonçalves, ele partiu para as vias de fato e conturbou ainda mais os bastidores em momento decisivo da temporada. Resultado: o Fla só empatou no Maracanã e garantiu o quarto vice da temporada.
CHEGADA DE TITE E DESPRESTÍGIO DE GABIGOL
Menos de duas semanas após a demissão de Sampaoli, o Flamengo apostou na contratação de Tite, desempregado desde a saída da seleção brasileira. O gaúcho só queria trabalhar em 2024, mas foi convencido a assumir ainda em 2023, mesmo com o Brasileiro já dado como perdido, para ajudar na montagem do elenco para a temporada de 2024.
Tite mudou o cenário nos bastidores. As relações humanas foram retomadas e alguma esperança de título nacional passou a existir diante dos escorregões do Botafogo e uma goleada por 3 a 0 sobre o Palmeiras. No seu principal estilo, o treinador ajustou o sistema defensivo e definiu Gabigol, em seu pior ano com a camisa do Flamengo, como reserva. Ele deu minutos ao camisa 10, é verdade, mas não começou nenhuma das 12 partidas com o atacante como titular.
Na base da conversa e confiança, ele “trouxe de volta” Arrascaeta, Gerson e Pedro. Também promoveu uma renovação e deu moral a Everton Cebolinha, que foi seu atleta numa Copa América, e arrumou um espaço para Luiz Araújo. Na 35ª rodada, o Flamengo chegou a liderar o Brasileiro por alguns minutos durante a vitória por 3 a 0 sobre o América-MG, mas o consistente Palmeiras retomou a ponta. A esperança pelo título só ruiu de vez na antepenúltima rodada, quando o Flamengo perdeu por 3 a 0 em casa para o Atlético-MG, que também mirava a taça.
ADEUS AOS ÍDOLOS
Já sem chances reais de título, na penúltima rodada, em vitória por 2 a 1 contra o Cuiabá, no Maracanã, o clube se deu ao luxo de promover uma festa para se despedir dos ídolos Filipe Luís e Rodrigo Caio, com taças no campo, mosaicos e produtos personalizados.
Rubro-Negro de coração e um dos maiores laterais do clube, o catarinense Filipe foi retratado no Setor Norte em imagem quando criança ao lado do avô Ivo. Rodrigo, zagueiro que conviveu com graves lesões, foi erguido no Setor Sul beijando a taça da Libertadores.