Um estudo que está sendo conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) revelou que o índice de infecção pela Covid-19 entre os atletas da Federação Paulista de Futebol (FPF) durante a temporada de 2020 foi de 11,7%, número que equivale ao dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente no combate à pandemia.
Para chegar ao resultado, foram analisados retrospectivamente quase 30 mil testes de RT-PCR – quando as amostras são coletadas através de cotonetes (swabs) introduzidos no nariz e garganta – aplicados em 4.269 atletas, ao longo de oito torneios, sendo seis masculinos (Taça Paulista, Sub-23, Sub-20 e as três divisões do Campeonato Paulista) e dois femininos (Campeonato Paulista e Sub-17). Ao todo, 501 exames deram positivo.
Também foram analisados 2.231 testes feitos em integrantes das equipes de apoio (comissão técnica, dirigentes, roupeiros, etc), sendo que 161 deram positivo, o que representa 7% do total.
Professor da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP) e coordenador da pesquisa, Bruno Gualano, falou à Agência FAPESP sobre a disparidade nos números em relação a outros países:
– “É uma taxa de ataque bem superior à observada em outros países. Na liga dinamarquesa de futebol, por exemplo, foram quatro resultados positivos entre 748 atletas testados [0,5%]. Na Bundesliga [da Alemanha], foram oito casos entre 1.702 jogadores [0,6%]. Mesmo no Catar, onde há um risco moderado de transmissão comunitária, o número foi menor do que o nosso: 24 positivos entre 549 avaliados [4%]. Comparados aos outros casos de que se tem registro, portanto, nossos jogadores se infectaram entre três e 24 vezes mais”.
Os autores do artigo, que ainda está em processo de revisão por pares, tiveram acesso à base de dados do laboratório comissionado pela FPF para testar os atletas. Porém, os atletas de equipes que disputaram torneios nacionais tiveram a opção de serem testados em laboratórios comissionados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Como esses resultados não entraram na análise, os autores afirmam que “os números provavelmente estão subestimados”.
Atletas x membros do staff
Quando se comparam os resultados dos atletas e dos membros do staff, percebe-se que o número de infectados pela Covid-19 foi maior no primeiro grupo. Porém, os casos graves foram identificados com mais frequência no segundo grupo, que possui uma média de idade mais alta.
– Esse é um dado que preocupa. Os poucos casos graves – entre eles um que evoluiu para óbito – foram registrados entre os integrantes do staff. Embora nossos dados sinalizem que os atletas tendem a desenvolver apenas sintomas leves ou mesmo serem assintomáticos, eles podem atuar como vetor de transmissão para a comunidade. Em geral, são indivíduos com uma vida social muito ativa – disse Gualano.
Para o pesquisador, não é possível identificar o impacto das infecções secundárias provocadas pelos atletas em seus círculos sociais, já que a “política que prevê o rastreio de contactantes nunca foi implementada no Brasil”.
Quebra do protocolo
Em março de 2020, as medidas de distanciamento social foram implementadas no Estado de São Paulo, e as partidas de futebol foram suspensas até junho. O Comitê Médico da FPF, presidido pelo Dr. Moisés Cohen, criou um protocolo para minimizar os riscos e, segundo ele, “os casos apareceram toda vez que houve fuga do protocolo”, já que “é um ambiente [esportivo] controlado, onde os riscos são monitorados e minimizados, dentro do possível, fazendo testes a cada dois ou três dias. Para aqueles que saem [da concentração] e voltam os testes são diários. Também implementamos rastreamento de contatos em caso de RT-PCR positivo e todos os cuidados de proteção, como EPI [equipamento de proteção individual] e álcool gel”.
Segundo o levantamento realizado no estudo, sete times tiveram mais de 20 casos confirmados, 19 registraram dez ou mais e um chegou a registrar 36, sendo 31 em um único mês. Dr. Moisés Cohen reitera que os surtos são consequência da “quebra do protocolo”.
Para Gualano, de fato, o risco de transmissão do vírus durante as partidas tem se mostrado pequeno, mas que a falta do bom senso e a desigualdade social presente no país contribuem para o alto número de casos.
– Funcionaria se fosse aplicado na Dinamarca ou na Alemanha. Conta-se muito com o bom senso dos atletas, que são orientados a ir do Centro de Treinamento para casa e a manter o distanciamento social e as medidas não farmacológicas de proteção nas horas de descanso. Mas aqui no Brasil uma boa parcela não segue essas regras e não sofre qualquer tipo de punição. Além disso, viaja-se muito para disputar as partidas. Os times menores vão de ônibus, comem em restaurantes e ficam provavelmente mais expostos do que os jogadores de elite. Nossa desigualdade social permeia também o futebol – afirma Gualano.
Retorno do Campeonato
Sobre a volta do Campeonato Paulista, Gualano demonstra preocupação, usando como exemplo as medidas adotadas pela Associação Nacional de Basquete dos Estados Unidos (NBA), como opção para uma retomada segura.
– Enquanto a transmissão da COVID-19 não for mitigada, qualquer setor que reabra representa um risco elevado de contágio. A única alternativa segura seria isolar completamente o futebol dentro de uma bolha, como fez a NBA, a um custo de US$ 170 milhões. Ou fecha ou isola – finalizou o professor.
O que diz a Federação Paulista de Futebol
Em nota, a FPF se manifestou sobre o estudo:
“A Federação Paulista de Futebol, obedecendo critérios exclusivamente científicos, forneceu para estudo da USP informações quantitativas sobre os exames de RT-PCR realizados durante oito competições de categorias distintas (masculino, feminino e base) no Estado de São Paulo, entre 01/07/20 a 30/12/20.
Tal pesquisa tem como principal objetivo a detecção de eventuais comorbidades, principalmente cardíacas, respiratórias ou neurológicas, em atletas profissionais de futebol com RT-PCR positivos assintomáticos ou oligosintomáticos. Trata-se de um estudo ainda inédito no futebol mundial.
Em nenhum momento o estudo foi realizado com objetivo de comparação com outros centros, afinal, existem enormes diferenças entre os países/ligas que inviabilizam, do ponto de vista científico, essas correlações. Elencamos abaixo as razões:
1- As características dos Protocolos de Saúde aplicados em cada país são diferentes;
2- A comparação envolve períodos distintos de análise dos dados;
3- O momento da evolução da pandemia em cada local também envolve diferenças relevantes para esse tipo de comparação;
4- As características sociais de cada país têm enormes distinções;
5- A velocidade da transmissão do vírus é diferente entre os países;
6- A frequência da realização dos testes em algumas ligas foi distinta;
A comparação com qualquer outro setor no Brasil também é cientificamente incorreta, pois seguramente a testagem frequente em todos os atletas possibilitou maior número de diagnósticos, principalmente por serem assintomáticos. Ou seja, o futebol realiza muito mais testes do que a grande maioria dos segmentos econômicos, e de maneira mais frequente, se contrapondo à grande subnotificação pregada pela grande maioria dos cientistas quanto ao número de contaminados no país.
Desta maneira, do ponto de vista médico e científico, a comparação com outros países/ligas e setores é completamente descabida e desinforma as pessoas.
O Comitê Médico da FPF ressalta que o protocolo da FPF é fundamental para o controle da pandemia no esporte, uma vez que a imensa maioria dos atletas é assintomática, e o diagnóstico precoce por meio dos 31.632 testes de RT-PCR, levou ao rápido isolamento desses indivíduos e evitou a disseminação exponencial do vírus.
Todos os envolvidos no futebol paulista foram rigorosamente orientados para os devidos cuidados de prevenção, constantes no protocolo. Entretanto, a maior parte dos testes positivos está relacionada ao não cumprimento do protocolo, cujas contaminações se dão essencialmente fora do ambiente do futebol. Por isto, inclusive, a FPF estuda com os clubes estabelecer punições aos profissionais que descumprirem os protocolos de saúde estabelecidos.
Cabe salientar que o Comitê Médico da FPF e os médicos dos clubes do Campeonato Paulista são absolutamente sensíveis ao momento atual da pandemia no Estado de São Paulo e que os protocolos são dinâmicos. Por esta razão, para a volta dos jogos nesta Fase Emergencial, defendem a concentração no modelo de “bolha” em ambiente controlado, com testes seriados, avaliação médica diária e rastreamento de contato dos eventuais casos positivos”.
A pesquisa foi realizada no âmbito da coalizão Esporte-COVID-19, em que uniu pesquisadores do Hospital das Clínicas (FM-USP), Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital do Coração (HCor), Complexo Hospitalar de Niterói, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e Núcleo de Alto Rendimento Esportivo, e contou com o apoio da Federação Paulista de Futebol. O consórcio tem como objetivo acompanhar as possíveis consequências a longo prazo do novo coronavírus em jogadores de futebol e outros atletas de elite.
Ana Jéssica Pinto e Ítalo Ribeiro Lemes, bolsistas de doutorado da FAPESP, além do professor Bruno Gualano e do Dr. Moisés Cohen, assinam o artigo.
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